BARBOSA, Aline Nascimento. ENTREVISTA com APARECIDA DE JESUS FERREIRA. Revista X, v. 14, n. 3, p. 1-15, 2019.
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Aline Barbosa: Você afirma que ter professoras/es e profissionais críticas/os que lidem com questões raciais requer consciência sobre suas próprias trajetórias e, no Brasil, vivemos um racismo mascarado e a falta de representatividade constante. Muitas vezes são anos de reflexão até assumirmos nossa identidade racial negra. Como foi esse processo para você?
Aparecida de Jesus Ferreira: O processo de reconhecimento da sua própria identidade racial negra é algo muito complexo no Brasil, isso em razão de que se trata de um racismo mascarado. No contexto brasileiro, embora haja várias evidências, tanto do ponto de vista de pesquisa na área, como também evidências do que ocorre cotidianamente na vida das pessoas negras, de que o racismo existe e de que faz parte das experiências cotidianas das pessoas negras. No Brasil em vários segmentos sociais é negado de que o racismo ocorra cotidianamente na vida das pessoas negras. Dessa forma, assumir a identidade racial negra depende de vários fatores, desde o conhecimento sobre o tema, a educação recebida na família (que se reconhece como negra e tenha uma percepção de autoestima e de empoderamento da identidade racial negra), meios escolares (escolas, universidades, coletivos de negras/os), entre outros fatores.
No meu caso, o reconhecimento da minha identidade racial negra ocorreu em casa a partir das experiências de racismo que vi que ocorriam com a minha mãe no trabalho. Ocorreu também pela educação de autoestima e de empoderamento, pois minha mãe sempre me incentivou que eu gostasse da minha cor de pele e cabelo. Minha mãe sempre usou, dentro de casa, vários adjetivos afetivos e amorosos para a nossa cor de pele que fizesse com que eu e o meu irmão ficássemos orgulhosos. No entanto, passei a ler e a pesquisar mais sobre o assunto, em especial no momento em que entrei para a universidade e consolidei o meu conhecimento sobre as questões raciais. Já com alguns conceitos bem consolidados, isso fez com que eu assumisse e discutisse, debatesse sobre o tema com argumentos fundamentados.
O processo de assumir a minha identidade racial negra foi muito doloroso e ainda é na medida que me exponho e falo abertamente sobre o tema. Nesse sentido, sempre há questionamentos, tentativas de desconstrução e de deslegitimação do que eu digo publicamente acerca do tema em ambientes que não estão esperando que eu vá argumentar e discutir sobre a questão da identidade racial negra. Ou seja, sempre há olhares, posicionamentos dos corpos das pessoas e, algumas vezes, há aqueles que estão dispostos a ter uma discussão mais acalorada me dizendo: “Lá vem você de novo abordando sobre a questão racial”.
Esses que questionam/discordam e agem como se eu não pudesse discutir e abordar sobre algo que me afeta cotidianamente, a exemplo de quando entro numa loja e sou seguida pelos vendedores – demonstrando uma preocupação que eu vá roubar algo da loja −, quando vou comprar determinado produto e tentam me vendar o mais barato, quando dão sugestões de como devo usar o meu cabelo, quando pessoas falam claramente que a minhas tranças deveriam ser substituídas por alisamentos ou mesmo quando falam que eu deveria cortar o meu cabelo, etc. Esses que questionam/discordam e agem como se eu tivesse que me calar sobre quando, por mais exemplos, vou a restaurante ou a lugar mais sofisticado e há olhares de pessoas que não esperam ver o meu corpo naquele local. Sem contar as inúmeras vezes em que fui dar palestras em lugares em que o tema não era sobre a questão racial e as pessoas vinham procurar a palestrante e não conseguiam me ver como a pessoa que iria ministrar aquela palestra. Por exemplo, lancei recentemente o livro de literatura infantil “As Bonecas Negras de Lara”. Então fui convidada para ir a uma escola particular para falar sobre o livro. Ao chegar na escola, a pessoa que veio me atender me perguntou: “O que você quer?”. Eu disse: “Fui convidada para vir aqui para falar sobre um livro”. A pessoa, é claro, não escutou ou não quis escutar o que eu disse e me falou: “Não temos livros aqui!”. Eu repeti o que disse anteriormente, dessa vez mais alto e bem pausadamente. “EU FUI CONVIDADA PARA VIR AQUI PARA FALAR SOBRE O MEU LIVRO PARA AS CRIANÇAS DESTA ESCOLA!”. Ela abriu o portão e, com muita má vontade, me levou para falar com outra pessoa na escola. O que é importante ver aqui, nessa interação,são os modos como o corpo negro é recebido nos locais e isso fica evidente desde a tonalidade de voz, a polidez, o desejo de estar ou não com a pessoa, a boa vontade ou não e tantas outras maneiras de agir que eu poderia citar aqui que ocorreram naquela escola até o momento final, quando deixei a escola.
Falar sobre identidade racial negra e abordar como eu assumi essa identidade exige refletir sobre as experiências que me rodeiam cotidianamente, pois todos os lugares sociais em que circulo e todas as minhas relações sociais são mediados pela minha cor de pele, pela minha estética (cabelo, cor de roupas) e ainda sobre a minha voz e como eu falo − sempre assertivamente, sem rodeios e indo direto ao ponto. Ou seja, essas foram as formas como eu assumi e como foi constituída a minha identidade racial de mulher negra.
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